Passei por aqui.
"Os cegos insinuam tragédias em cânticos. Sendo dia de feira, vendem os panfletos malditos entre as moças solteiras que anseiam amores tão intensos que matam – entenda-se assim a veemência no adquirir dos cânticos. Hão-de decorá-los, certamente, ainda antes da desfolhada, assim que todas as letras conseguirem juntar. As velhas, algumas, benzer-se-ão em murmúrios medievais “vade retro satana”, outras, chamando-lhes galdérias, embaraçarão as moças ao silêncio.
Glória, sentada na pedra bruta que serve de degrau da capela, aprecia a multidão esbaforida em aquisições de leguminosas e indumentárias variadas, apreciando, enquanto isso, os quase abafados cantares dos cegos a que poucos atentam.
Outras mulherzinhas, meio tímidas e coradas, meio encantadas, suspiram, seguindo a triste história da costureira Rosinha e do Serralheiro João; não conhecem elas o romance de Romeu e Julieta, mas com certeza nem esse achariam mais belo que o de João e Rosa, morta ela por alma desgostosa de um casamento forçado com um outro alguém, morto ele por suicídio em desespero da sua morte.
E Glória sonha, pobre tonta, por tal amor além da morte, permitisse Deus tal maravilha; crê que sim, porém “que morra eu agora se for pecado, Senhor meu”. Amar é pecado, diz o padre, sem o dizer de boca cheia.
Remexe o bolso, acha dois reis, irá comprar o papel do conto de amor que a fará sonhar durante noites, até perder o medo da morte – e de ser mulher.
É neste rodopio dos corpos roçando-se discretamente, acidentalmente, distraidamente, pela feira das loucuras, onde as pessoas são mais animais que os animais que ali compram, que Glória avista a divina criatura dessa madrugada, alta e de sereno semblante, espinha erguida, tornando-a majestosa no seu leve caminhar debaixo do longo vestido de púrpura escuro. Coisa que Glória nunca vira. Seria jamais a Virgem Maria, talvez antes Maria Madalena, pelo tom terno e fatal dos seus olhos, crê Glória. Talvez virgem seja, ou antes prostituta, pelos inesperados olhares fulminantes das mulheres, receosos das crianças, fascinados dos homens. Talvez a majestosa criatura seja ambas as mulheres, Maria e Madalena, donzela e meretriz, mãe de Cristo e sua serva, amante quiçá. Ou então um demónio em forma feminina – não fosse toda a mulher, na verdade, a encarnação mais óbvia de Satanás."